Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades E fazendo a vontade ao tempo em que partes, Porém à certeza de quantas serão as saudades, De sentir à volta toda a revolta e as tuas artes...
Esse teu testemunho ser-nos-á sempre franco, As tuas cantigas falarão mais alto e tempo fora, Mesmo que nos deixando, José Mário Branco, Neste partir, ao que nem assim chegou a hora.
A tua persistência e luta, toda essa convulsão, Ditou bem o tempo e uma sociedade sem pão, Nas tuas palavras, ditas nas cordas da guitarra...
Mas eis que ao tempo fizeste toda a vontade, Sem algo que tenha mudado à triste verdade... Assim se calaram as asas de mais uma cigarra!
Ai, este mundo, esta horrenda pocilga, Em que chapinhamos!... Ai, esta miséria, em que nos encontramos!... Ai, este universo, em que nos dispersamos E rastejamos, Sem o mínimo dos remorsos, Uns comendo a carne e outros roendo os ossos!... Ai, esta triste verdade e haja quem o inverso diga, Sem peso na consciência!... Ai, talvez esta minha falta de paciência, Esta minha não ausência A quanta podridão e na minha resistência!... Esta minha persistência, esta minha luta, Contra quantos filhos da puta!... Ai, todo este meu vómito, Quando te vejo a passar, Reles, mostrando riquezas, mas incógnito No porquê e que não ousas demonstrar!... Ai, quantos meus ais E por tua culpa, miserável de merda, Que não te afogas, ancorado a esse cais, Mas afogado em massa lerda!... Ai, triste figura de gente, Que nem comida, ou água, mereces, Parasita da riqueza de quem mais rico E a esses sim, a minha devoção dedico, Quem na pele tanto sente Aquilo que nunca lhe ofereces!... A retribuição do seu trabalho, Meu filho da puta do caralho!... Ai, quanto gostava de te acariciar o pescoço, De carregar, com as misérias dos outros, esse teu dorso E fazendo-te o mais perfeito esboço... Da quanta besta que és... e na tua postura de corso!... Ai, quanto eu gostava!... Espremer-te... fazer contas, quanto eu adorava!...
Não compro embalagem, mas produto, Procuro verdades e pelo mais concreto, Não me interessa a árvore, mas o fruto, Razões duras e de quem me for directo. Não colho frutos que derivem a ilusões, Todo o restante e algo me passa ao lado, Nada quero saber, que genuínas razões, Sendo um carteiro e que deixa o recado; Só lê quem quer, depois de abrir a carta E o lixo fica mesmo ali, pela estrumeira, Quantas vezes na interrogação de farta, Depósito de qual mensagem verdadeira. Compro e levo para casa, a meu arrumo Tudo merecendo um lugar na prateleira E quando não gosto sacudo, isso assumo, Pelo estar farto de tanta variada asneira... E escrevo novas listas de frescas compras, Para que nada falte, por tal humilde vida, Estando obeso às tantas diversas broncas, Que minha comida passou a ser definida; Por minha despensa só passa do melhor, Venha quem vier e ao que tentar vender, Em promoções de lágrimas, ou outra dor E convincentes rótulos e de bom parecer...
Olho-me, neste espelho cristalino, Vejo algumas rugas, cabelo grisalho, Olhos cansados, mas ainda com vida, Num corpo e ainda um tanto erecto... Espreito pela janela do meu tempo, Ao longe, pelo decorrer da paisagem E sonho, seguindo o andar das nuvens, Mesmo não sabendo onde me levam... Passo uma mão pela face, de suave E a outra pelo meu reflexo ondulado, Mirado pela frente, por trás, de lado, Pesquisando o rosto, um quanto fino, Por entre a roupa de algum agasalho, Que tapa a imagem à minha medida E que pelo mundo está de passagem... Mundo esse, que nos molda farrapo E que, na falta de outro, nos é tecto, Por esta, ou quantas outras viagens, Num acelerado voo, como se de ave. Volto ao espelho, mas feito de água, Elevo o queixo e pesquiso a garganta, Olhando o correr do rio, que se afasta, Deixando-me este espelho e vida sua, O embalo de como tais águas dançam...
Amar, é estar preso, na maior liberdade, É olhar o céu, as nuvens, o mar, a paisagem e sonhar, É partir pelas estradas, à procura da verdade, Olhar o seu semelhante na miséria e ofertar...
Amar, é estar com todos e em tudo, Olhar à sua volta e entender o mundo, Fazer-se ouvir e sem nunca ser mudo, Percorrer o túnel, sem que luz ao fundo...
Amar, é nunca receber, enquanto dar E sem nada esperar em troca... É saber viver, sem nunca perturbar.
Amar, é ver cores a preto e branco, Viver o imaginário do perfeito e que nos toca, Enquanto prisioneiro da virtude de ser franco...