Eram cantigas das ruas, Por nossa velha Lisboa E foram minhas e tuas, Cidade tão moça e boa. Faltam os tais pregões, Das varinas, ao passar, O espanto de aldeões, A ouvir fadistas cantar. Ouviam-se cauteleiros, Em oferta de sua sorte, Por entre tais rafeiros, À espera da sua morte. Chiavam aquelas rodas, Deslizando ruas e carris, Por certas, senão todas, Quantas e que eu já quis... Ao longo de negras ruas, De óleo, seco, molhadas, Que a noite vestia nuas E gente desamparadas... Rebuscava-se as beatas, De quem à rua lançadas E quem, com as suas latas, As apanhava das calçadas. Ouvia-se o mestre latoeiro, O assar castanhas, pacatos, Num tão diverso pregoeiro, E engraxadores de sapatos; Um vendedor de passarada E passeando as suas gaiolas, Putos a correr pela estrada, Arremessando suas sacolas... Tampouco faltava o padeiro, Espalhando o pão pelo chão, Saindo a sorte ao tal rafeiro, Se houvesse quem de olhão. Nesta falsa alegre azáfama E tantas coisas que vivemos, Vivo fornalhas dessa chama, Do tempo que percorremos... Punha-se o dia, pela noite, Abrindo-se quantos bares E lá urgia quem, de afoite, Na escolha de seus pares... Pela manhã surgia o dia E com demais semblante, Sendo por igual porcaria E tanta gente emigrante. Era o rebuliço, tão diário, Que, por si e sem espanto, Era mais fado, tal fadário, Deste povo e do tal canto...
Sempre que te entregares, Por caminhos de pensamentos, Procura entender o mundo Em tudo o que não entendes... Procura saber a razão, Do quanto à tua volta, Tanto na melhor sensação, Ou quando te fecharem a porta... Tenta perceber os lamentos, De todo aquele mais inculto, Pois também ele é um vulto, Por entre tantos do vulgo E não te atrevas ao julgo De quanto pensamento profundo... Todos choram as suas dores, Se perdem em falsos amores, Mas não deixes que os rancores Sejam casa de penhores... Olha ao alto, ao longe, o Universo, Esquece o mais controverso, Não que tudo seja um verso, Por tanto caminho adverso, Mas a vida é uma passagem... Quanto ao resto, uma miragem!
Nestes meus lentos passos, Sigo na direcção aos paços, Que nada, ou pouco, sinto, Por debaixo do meu cinto... E neste olhar, de tão largo, Alcanço, sobre tanto largo, Aquilo que poucos sentem, Por demais que se sentem, Sendo, talvez, já um cento, Tais as vezes que me sento, Pensando no povo e não fio, Nem corda, quanto mais fio E de oiro, que, ainda, trago, Bebendo água de mau trago E, pela volta, em horas mato Tal cansaço, por entre mato... Pensando nestas secas linhas, Oiço o rolar que segue linhas E é assim, que em cima salto E os piso, à ira do meu salto!
Lamento a verdade e tão crua, Neste pensamento e muito meu, Nessa maldade e que é tão tua, Sem nunca entender o que te deu... Quando passares a esta porta E, no teu olhar, me censurares, Ou quando te cruzares na rua E que me apontes o teu dedo, Sempre que te olhares em casa, Diz-me aquilo que em ti verás, Nalguma imagem confundida E que tanto em ti merecida, Quando te olhares ao espelho... E, de muito certo, não chegarás A qualquer pena de minha asa, Tão-pouco a cabo desta grua, Nessa tua mente e tão torta, Em tal presunção e falsos ares, Nestas ideias, a que não cedo, Neste orgulho e de tão velho. Portanto, não me questiones E em tempo algum me condenes, Sendo que a este não chegarás E muito menos me encontrarás... Nunca te julgues mais e que alguém, Ou que este pobre e zé-ninguém, A quem nunca alcançarás os pés E sendo, tu, a pessoa que és...
Neste escalar das minhas montanhas, Sinto vontades ferozes, tão tamanhas, Olhar cá para baixo, tal a mesquinhice E igualmente farto de tanta aldrabice...
Pergunto, em que caminho anda Deus, Tais trilhos, demais pisados, não meus, Que nada faz, em infernos de injustiça, Esquecido e cego, vivendo na preguiça?...
Guerras, ódios e violências, corrupções, Adormecidas gentes, em tantas ilusões, Não se apercebendo ao que enganadas...
Gatunagem política e seus comandantes, Servindo-se de quantos mais ignorantes, Por suas promessas, que tão depravadas!...
Seguindo a ardente bola de fogo, que me guia, Bem lá para o fundo da estrada que percorro, Miro as sobranceiras planícies que me ladeiam E as distantes montanhas que me chamam, As cegonhas que planam no infinito celeste, Ou tais aves que se atravessam no caminho, Nas suas soberbas liberdades, tal quanto eu, Sonhando alegres mundos, nalguma utopia E que, de mãos aos céus, brado mero socorro. Por entre um trompejar da minha máquina, Em toda esta pessoal e irrequieta quietude E tamanha majestade deste meu percurso, Nestes manifestados contornos de longitude, Mergulhado em quanta imensidão e sozinho, Absorvo, em minha memória, este prazer E querendo acreditar que não será só meu, Mas de quantos e que fazem simbiótico uso, Por semelhante e onírico resplandecer E demais oculto paraíso, tanto quanto este E escondido de qual perversão assassina... Pois que a Mãe Natureza é, de si, já débil E a sua destruição rota deveras mais fácil! ... Eis que acelero, inclinando-me às curvas E enquanto faço jus de alguma velocidade, Num sacudido e fresco vento pelo rosto, Deixando, para trás, esse perpétuo rasto E uma suave brisa, nesta vibrante vontade E enquanto as ânsias não me forem turvas. Enquanto viajo e se despede o sol-posto, Sigo neste delírio e muito de meu gosto... Talvez que, um dia, encontre o tal paraíso, Repartindo, com o mundo, sublime sorriso!...