Por norma e quando morrer, A este universo doarei tudo, Sem direito a reclamar. No quanto que levarei, Serei aquilo que cá deixar... O sonho, ilusão, sofrimento, Lágrimas de um tormento, A obra e a arte, dedicação E um orgulho de quem sou, Árvore que nunca abanou, Nascente que rostos lavou, Rio que águas levou, Argila que a mão moldou; Quem nunca a besta beijou, Nem a um deus se entregou, Em tal mundo de confusão... E quantas vezes comendo, Entre quimeras engolindo, O pão que o Diabo amassou. Serei a pedra no cimento, Argamassa do que sei, Pintura de cal luzidia, Palavra na voz de um mudo, Mestria nalgum saber, Luz da alma, noite e dia, Punho de qualquer momento E estando sempre por perto. Serei tudo, menos paspalho!... Rocha, por entre o cascalho, Água fresca no deserto, A chama, em noites de Inverno, Extrema-unção dos pecadores, Antes de partirem pro Inferno... Segredo de quantos amores! Deixarei saudades, No meio de algumas certezas E quantas mais incertezas, Por entre muitas verdades... Levarei tudo, sem levar nada! Por tamanha minha vontade, Espalharei força, recados, Em prol dos desgraçados, De qual vida malfadada E à mão de tanta maldade. Partirei, no desejo de regresso E por lamas que não confesso, Nem nas linhas de um verso... Serei saudade do controverso E, em tudo o que cá deixo, Pouco sendo o que me queixo. Não querendo ser plural E muito menos ser igual, Tudo me soube a pouco... E deveria ser mais louco!
Dançam os corvos com as andorinhas, Os melros, estorninhos e os pardais, Bailam pintassilgos, com as cotovias, Mochos, corujas, eu sei lá o que mais... Festejando todos e quantos animais. Comemoram as hienas e os chacais, O rei leão, cortejando seus súbditos E serão convidados alguns crocodilos A fazer parte desta proclamada festa E lá vão chegando de qualquer parte, A essa clareira preparada, na floresta, Em oferenda de cada qual a sua arte... Por entre as ondas sacudidas do mar, Eis chegado o tempo certo de dançar E, num andar de rodopio, os peixes, Enrolam-se pelos cantos do oceano, Vêm, a todo o jeito e em cardumes, Num lado a lado de quantas baleias, Embalados nalgum canto de sereias, Em manifestos jogos, mano a mano E, em tal festim de confraternização, Estonteante e lida prosa, feita verso, Fazem-se preparos de futura união... E por recantos perdidos do Universo, Esse bicho homem faz o seu possível E manifesta vontade pouco credível, A que alguma paz seja arma futura, Pelo meio de mais uma das guerras, De tantas e que há milénios já dura, Neste mundo comandado por feras, Em prioritários acordos de riqueza, Por paragens devastadas por ódios, Arautos do mal e danças de pódios... Enquanto outros caem na pobreza!
Perco-me, nestes carris da liberdade, Máquina sem carruagens, ou pressão, Por entre tais linhas de desigualdade E, tanto mais, distâncias de desilusão.
Foram de ferro, polidos com o tempo, Percorridos, pressionados, para nada, Levando e trazendo, pouco de limpo, Esperanças de vida, alma desgraçada.
Dos sons de pouca terra e seu vapor, Deslumbram-se restantes migalhas, De tudo o que deixaram, com amor.
Neste subir da montanha, já fartas, Seguem estas máquinas, fornalhas E capazes de explodir, de cansadas.
Nesta esculpida e álacre madrugada, Rompem teus raios, febris e ciosos, Imponente sol, sopro da vida, Rasgando a noite e esconderijo, Iluminando tudo à tua volta, Num sacudir da cama os ociosos, Por tão poderosa força acutilante, Tremendo júbilo cintilante E aquecer tudo o que ande à solta... Este caminhante, da noite despida E recolher ao refúgio, onde me dirijo, Em busca de uma calma merecida. Teus disparos de luz, são flechas Penetrantes, ardentes, como chamas, Nas mais incógnitas direcções, Espicaçando os mais ténues corações, Em reflexão de um quanto desejado E na esperança que seja alcançado... São manto de protecção, Cobrindo este leito, em tais carinhos, Meigo estender da tua mão E aconchego nos piores caminhos, De tantos e já sem conta, lamentos E de quantos melhores momentos... Teus raios são prazer em que me deleito, Sabores deste meu mundo, De qual amor, o mais profundo E pouco a pouco desfeito...
São o outro grupo de putos, Um outro bando de pardais... Andam nus, ou esfarrapados, Morrem à sede, esfomeados, Por tais cantos, abandonados, Sem nada terem, nem beirais... Mastigam o que resta do nada, Do pouco que nunca advém, Engolem lágrimas em seco, Diluídas no que não comem, Dormem na poeira deixada, Enrodilhados em farrapos, Como filhos de ninguém E como montes de esterco... São filhos de negro mundo, Enteados da sociedade E que não os reconhece... Enjeitados, órfãos de guerras, Miséria de quem padece, Na maior da ansiedade, Pesadelos que arrefecem, Num sono triste e profundo E abandonados às feras, Lançados à morte, feitos trapos, Em lençóis de quem os esquecem... Simples putos à luz do homem E em óbvia escuridão total... Sombras, que cada dia escurecem, Nesse destino fatal, As noites que nos adormecem... São putos, filhos do mesmo Universo, Que nos torturam a alma, Neste esquecimento adverso E enterrados, na nossa calma. Que sejam putos, nunca lutos... De pomares diferentes, mas frutos!... E o que é feito de tais estatutos, Dos homens, na sua cegueira, Que olham, à sua maneira, Sem verem tais desgraçados?... Sim, são putos, conceito de astutos... Sementes de outra sementeira, Que não têm eira nem beira... Crianças, de ventres inchados! ... Dormem às estrelas, ao relento, Enroscadas no sofrimento!
Lamento esta verdade, tão crua, Pensamento que é meu, Nessa maldade que é tua E sem saber o que te deu... Quando passares à minha porta E, no teu olhar, me censurares, Ou quando te cruzares na rua E me apontares o dedo, Quando chegares a casa, Diz-me aquilo que verás, Nessa imagem confundida E não mais que merecida, Quando te olhares ao espelho... De certo que nunca serás Uma pena da minha asa, Um cabo da minha grua, Nessa tua mente tão torta, Presunção de falsos ares E ideias a que não cedo, Neste orgulho e já tão velho. Por isso, nunca me apontes, Muito menos me condenes, Tanto que a mim não chegarás E muito menos me encontrarás... Não te julgues mais alguém, Que este pobre zé-ninguém, A quem não atingirás os pés E sendo, tu, a pessoa que és...